Se fosse música seria um forró da banda aquários. Se fosse um solo seria Rita Hayworth no clássico ‘Gilda’ dançando Matruz com leite. Say, só não assumiria um tipo de postura previsível, como chegar numa mesa de bar soltando: - “que porra é essa caralho?”. A gata surpreende a todos quando soltando com sua voz mansa: “com licença, onde fica o banheiro?”
As imagens que compõem a essência de sayara, say, ou melhor, Elielson Pacheco, um dos grandes artistas de Teresina, evidenciam a arte mediada com a vida real. A procura de Elielson pra virar 'gente melhor no mundo' surgiu antes mesmo da série de personagens que vieram à tona na mídia assumindo o universo travesti, cross dresser e transexual. Foi na nossa troca de emails que passei a traçar o recorte dessa personagem e sua motivação; o término de um relacionamento, que rendeu na série de vídeos [TTA - Today Tomorrow Always] onde Elielson passa a vestir sayara e nos confundir em gêneros e conceitos. Como o soundcloud anda trollando com as nossas músicas, e com as nossas vidas, não é dessa vez que vamos poder escutar o som que faz a cabeça da gata exótica junto a entrevista. Então, listei apenas as músicas.
Sayara é um suspiro de vida no meio de tanta caretice e falta de tolerância. Um convite pra rever conceitos e limites de gênero e de respeito ao próximo. Tá pensando que travesti é bagoonça?
Say, como foi o pé na bunda?
Pé na bunda de um ex-namorado (que começou esse projeto junto comigo e depois me abandonou). Aí comecei a filmar vários homens bonitos pela rua, por exemplo, na tentativa de "exorcizar o abandono”. Tenho um arquivo com mais de 80 homens. Quando comecei a dar nomes a eles parei, porque achei muito esquizofrênico. Filmei homens de Berlim, São Paulo, Teresina, São Luis, Brasília, Boa Vista, etc, por onde o núcleo estava fazendo turnê na época.
Pé na bunda da vida (minha avó, que amo muito, que é um dos meus referenciais de vida, quase morre de um enfarto). Pé na bunda do poder público cultural local (pois o novo pres. da Fundação Cultural, Cineas Santos, não quis saber do trabalho que o Núcleo do Dirceu desenvolvia e adotou uma política, que não abarcou o trabalho de intercambio que desenvolvíamos no Teatro Municipal João Paulo II, e por isso, todos pedimos demissão).
Se for pensar numa questão do TTA é a seguinte: como continuar VIVO depois de um pé na bunda? Como sofrer de uma dor de cotovelo e conseguir transformar isso num vídeo de arte, lidando com a linguagem vídeo (vídeo-dança), essa é a parte do artista, mas mantendo uma ligação com os fatos (pés na bunda).
Algumas pessoas chamam isso de “ficcionar à realidade”. E como o TTA: Today-Tomorrow-Always, nome do perfume da Avon que meu ex usava (ele fazia parte do Coletivo O 12, de Votorantim-SP), começou de uma relação por internet, por isso o projeto de vídeo tem características, um formato de vídeo pra web.
Também tenho que acrescentar que o TTA teve outras 3 bases: o projeto “ColaboraTóRIO”. Um projeto de residências artísticas que aconteceu/ vem acontecendo em Teresina e é uma parceria do Festival Panorama de Dança (Rio de Janeiro) com o Núcleo de Criação do Dirceu (Teresina), Artsadmin (Londres), Alkantara (Lisboa) e Garajistanbul (Istambul) e apoio financeiro da União Européia. E que teve a colaboração de artistas do núcleo e artistas residentes (Cristian Duarte e Denise Stutz, Brasil; Boyzie Cekwana, Africa do Sul; Zeynep Gunsur, Turquia; Rob List, EUA). As outras duas bases são formadas da minha relação com dois: paulistana/canadense Sheila Ribeiro e o piauiense/ holandês Marcelo Evelin (fundador e mentor do Núcleo do Dirceu).
A Sayara tem a sua personalidade própria? Já aconteceu das duas personalidades se confundirem?
Isso de se confundir, tem uma historia que aconteceu com ela que foi interessante. Estava ela no bar ‘Blues Velvet’ em Floripa, acompanhada de Sheila Ribeiro (com quem estava trabalhando na reedição do projeto de videoclipes Lugar Pra Ficar Em Pé), e um homem muito lindo chegou perto dela e falou a seguinte frase, num tom de cantada: é preciso ser muito homem pra se vestir de mulher, né? Pra mim, foi maravilhoso. Quando cheguei na boite, performado de Sayara teve alguém que me viu homem e mulher ao mesmo tempo. Não viu um homem tentando ser mulher, ele viu meus pelos. E foi interessante, porque ficou um clima porque ele era muito bonito e fiquei com vontade de tascar um beijo nele hahaha. A Sayara não beijou ninguém ainda, mas se isso acontecer, espero que seja um beijo bem molhado hahahahahahahaha.
Na dança existe o termo ‘trabalho de corpo’, que entendo como a busca de um corpo; uma técnica que serviria com suporte corporal próximo do projeto, da pesquisa. Você se espelha no universo das travestis ou utiliza-se do corpo de uma para compor esse trabalho? Existiu laboratório ou isso fluiu naturalmente?
É natural porque lido com motivações pessoais, físico-corporais, mas tem um trabalho. Não sei se laboratório é a melhor palavra. Bom, é uma pesquisa sobre os movimentos. Movimentos do corpo de uma travesti na sociedade.
No drama de Black Swan, último filme de Darren Aronofsky, Natalie Portman entra na história como uma bailarina que em busca do virtuosismo na técnica e encenação do cisne negro entra em paranóia, na esquizofrenia levando a sua morte. Na dança existem casos como o do filme, onde a composição do trabalho levou a loucura? Você passou por algum tipo de experiência em que pirou por conta do trabalho?
Acho que, de uma forma geral, em todas as profissões, quando o profissional se engaja no que faz, ele se mistura com o outro. Sai de uma normalidade, sei la do esperado. Lembro de uma historia que minha vó me conta que quando a filha mais nova dela, minha tia, tava perto de morrer, o médico chupou no nariz dela e trouxe-a de novo pra vida. Aí ele disse: "opa! veio um pouco de catarro, mas tudo bem". As enfermeiras disseram pra vó, que ela teve sorte, porque se fosse os outros médicos plantonistas que trabalhavam naquele hospital, não teriam feito isso e que talvez minha tia tivesse morrido.
Encaro a Sayara, como um trabalho, embora também seja divertido. Dá a maior preguiça me "montar" às vezes, mas quando penso que é também trabalho, fica mais interessante. Porque quando tô sem saco, ponho menos enfeite em mim. Dessa forma, a Say vai ganhando vida, como se fosse alguém real, que escolhe pintar as unhas um dia e no outro pôr apenas um batom e um rimel.
Acho que a arte contemporânea vem trilhando um lugar de pesquisa questionável, onde o artista se põe muito fora da obra, com pretensão, um olhar neutro sobre as coisas, dando a responsabilidade total ao público para atribuir um sentido a obra que faz. Acho que artista é sempre um militante, deve ter sempre algo a dizer por mais banal que seja. Pra se manter vivo, porque no final das contas a arte não tem uma função concreta na sociedade. Talvez uma função da arte é mostrar, justamente, que as coisas não tem função e que a vida não faz sentido.
Você tem encontrado outra identidade através da Sayara?
Tenho encontrado mais e mais EU. Porque estou penetrando nos meus desejos com pouco pudor. Me conhecendo mais. Encontrando outras sensualidades, outras maneiras de ser.
Sua família entende este processo quando você se monta?
Entende que eu tô brincando. Que é coisa de artista. Que sou gay. Os entendimentos são variados. Um dia desses a mamãe perguntou se eu tinha vontade de mudar de sexo. Falei a ela que não, que me sinto muito bem sendo homem, mas que pra ser um homem mais completo e consciente é bom experimentar as vezes ser uma mulher. Minha vó fez o vestido de oncinha da Sayara e sinto isso como um respeito e uma contribuição a algo que ela nem entende direito, mas que apóia, porque tem uma confiança, que em parte foi conquistada por mim. Sempre tentei incluir minha família no meu trabalho. Chamá-los pra assistir, conversar sobre. Porque, se às vezes é complicado até pra eu entender, imagina pra eles hahaha. A minha vó e meu pai dançaram num espetáculo dos belgas David Weber Krebs e Sarah Vanhee “IN A LAND”. Eles também curtem uns palcos hahahahaha
Lembro que você começou a se montar bem antes da mídia abordar personagens como a Ariadna do BBB, a modelo transexual LéaT. e o cartunista Laerte, que recentemente incursou no universo feminino se vestindo de mulher. Você acredita que esse fato tem feito as pessoas receberem o seu trabalho de outra forma?
Não sei se diretamente. Mas imagino que sim. Acho que estamos como brasileiros, vivendo uma sociedade mais dilatada em termos de gênero. Mas ainda tem gente que pensa que eu tô só me realizando como trava. E pra mim é tranquilo, porque não deixa de ser uma realização. Na verdade acho que parte disso. E venho me sentindo mais emancipado quando saio de Sayara, sem intuito de chocar nada e sim, mais no sentido de me incluir, de estar dentro da sociedade.
Você já teve alguma resposta negativa ao se travesti?
Ainda não.
Travesti é uma tendência?
Sim. Mas temo a banalização total disso. Sabe por que? Porque a situação da travesti ainda é muito marginalizada, pior do que a de ser gay somente. Alguns representantes políticos ainda associam ser gay a ser pedófilo, sadomasoquista e besta-fera. Imagina a travesti.
Travesti é uma tendência?
Sim. Mas temo a banalização total disso. Sabe por que? Porque a situação da travesti ainda é muito marginalizada, pior do que a de ser gay somente. Alguns representantes políticos ainda associam ser gay a ser pedófilo, sadomasoquista e besta-fera. Imagina a travesti. SAYARA, além de significar "carro" em árabe- coisa que só vim saber muuito tempo depois de sê-la, é um nome emprestado de um travesti, meu amigo, que tinha como nome oficial Hércules, e que parou de dançar para ser travesti e fazer “programa” porque, segundo ele: “-Dá mais futuro que dançar, né?”. Essa frase que escutei pr exemplo, é uma das minha motivações pra ter começado a me montar.
A Sayara tá dentro de uma performance ou essa incursão no universo da montação é só uma encenação para os vídeos?
A Sayara é um estudo para ser gente melhor no mundo. Ela é uma obra do Núcleo do Dirceu e fruto das questões que surgem dentro desse coletivo de artistas e da conexão que este faz com artistas de outros lugares.
Sayara tb é dj >
elielson:
1muito estranho-dalto:http://www.youtube.com/watch?v=wU1Th2te5-0
2 flores astrais - secos e molhados: http://www.youtube.com/watch?v=MZYg1aGxOWA&feature=fvst
3 if you fall - azure ray: http://www.youtube.com/watch?v=7s0-isQYG6
4 don't close to me - the cure: http://www.youtube.com/watch?v=-oCA1wba1HQ
5 nueva generacion-dani umpi: http://www.youtube.com/watch?v=2PG40qgz3Hk
sayara:
6 ha po zamani - mirriam makeba: http://www.youtube.com/watch?v=45chFXL0SUg (nao gosto muito dessa versao. gosto mais da versao que tenho)
7 llollaras - oscar d'leon: http://www.youtube.com/watch?v=OC7AQ9HqmMI
8 come away with me - norah jones: http://www.youtube.com/watch?v=wRu9s4fQoaM&feature=fvst
9 asas da imaginação - banda aquarius: http://www.youtube.com/watch?v=AfvTZD-aLNs
10 just can't get enough - depeche mode: http://www.youtube.com/watch?v=a84L1hVVEls
Onde encontrar Sayara[vídeos]:
TTA PROJECT 1 ((introdução, creme de rosto, mamãe, homens, vovó, quintal, dia de demissão, mano, teresina)
TTA PROJECT 2 (introdução, jana radiografada, papai, perfume, vovô, layane ou arquivo morto, soraya, nirlyn seijas, teresina II)
TTA PROJECT 3 (SAYARA, ELA GOSTA DAS COISAS SIMPLES)
TRAILER 1:http://vimeo.com/9880634
TRAILER 2:http://vimeo.com/10780732
TRAILER 3:http://vimeo.com/11829207
TTA PROJECT 4 (ELOGIES-2011) está sendo feito em parceria com o videomaker Jell Carone
JANEIRO:http://vimeo.com/18977641
FEVEREIRO:http://vimeo.com/21161308
> Fotos: Valério Araújo